Itu, fevereiro de 2013 Foto: Herman Claudius |
Sou emparceirado contra André Cajal, minha derradeira chance de conseguir o bloco FIDE e o tão almejado rating internacional.
Alguns amigos, mais experientes, alertam: “Cuidado. Ele é muito tático”.
Pouco a pouco, ao saberem do meu azar no emparceiramento, os conselhos chegam: “Jogue de longe. Não pare muito na mesa. Não o cumprimente”, diz o mais sarcástico.
“Feche a posição. Não dê chances para ele abrir o jogo. Ele adora atacar!”, diz outro mais sensato. “Vai tomar uma cajalada!”, profetiza uma antiga vítima.
Começo com e4, contrariando as sugestões de procurar águas tranquilas. Ele responde, ao toque, com c5 – empurrando a peça com tanta força que a derruba.
Vamos para a linha mais aguda da Siciliana. O jogo é cheio de possibilidades. Ele joga rápido, procura sempre linhas abertas, iniciativa, dinamiza a posição. Quase não gasta tempo para refletir, está sempre à frente no relógio, respira fundo e murmura palavras inaudíveis.
Aquele foi um bom torneio para mim e consigo empatar um final inferior, porque ele foi afoito e me deu sobrevida. Parecia querer encerrar a partida logo e poder, então, iniciá-la novamente. E sempre do mesmo jeito.
Ao ver que o empate era inevitável, ele reclama, resmunga, atira as peças no tabuleiro. A princípio, parece indelicado. Entretanto, alguém, que nos assistia ao lado, me explica o comportamento: “Não é nada pessoal, ele está bravo consigo mesmo. É uma boa pessoa. Ele já foi médico”.
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15 de maio de 2013. O senhor Andrey Kasal, 66 anos, é encontrado inconsciente em sua residência. O homem é levado para o hospital público Tide Setúbal, zona leste de São Paulo, onde dá entrada às 12h03, com suspeita de pneumonia.Nos corredores do hospital, algumas enfermeiras mais antigas comentam entre si: “Esse não é o médico que trabalhou no Santa Marcelina?”. Sim, é ele mesmo.
Uma senhora, que limpava sua casa periodicamente, liga para o Clube de Xadrez São Paulo – único contato telefônico que Andrey deixou registrado - e informa a situação do lendário enxadrista.
Ela não fala muito, parece assustada, apenas diz que o Andrey está “muito mal”. Passam-se dias sem notícia. Ele nunca mais voltou ao clube.
* * *
31 de maio de 2013. Mini-open no Clube de Xadrez São Paulo. Eu volto ao local depois de muito tempo ausente dos torneios, mas a atmosfera ainda é a mesma.
As pessoas mudaram, porém os estereótipos são iguais. O torneio discorre com emoção, mas parece faltar algo, faltar alguém. As brincadeiras após o término das partidas não acontecem tanto. A descontração ou o mau-humor dos derrotados não são sentidos.
Aquele velho senhor não está mais a arrastar suas sandálias gastas pelo salão. Andrey Kasal, frequentador assíduo dos torneios relâmpagos e mini-opens, não aparece mais uma vez. Ninguém tem notícias suas. Dizem que está internado, parece que o problema é no rim, talvez tenha enfartado.
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1º de junho de 2013. A médica Maria José, plantonista do hospital Tide Setúbal, declara óbito por infecção respiratória aguda e broncopneumonia (IRA-BCP diz a sigla no prontuário médico). Hora da morte: 16h10.
O corpo de Andrey Kasal segue, no dia seguinte, para o Cemitério de Itaquera, em Vila Carmosina. É levado por Ronaldo, agente funerário, no carro de placa EMU 9855. O cemitério registra o enterro, mas nenhum velório.
Andrey Kasal despede-se desta terra e deixa como legado sua própria imagem folclórica e controvertida. Não tinha parentes próximos nem filhos. Aquele que sempre alegrou os torneios que participou, fazia desafetos tão rápido quanto os trazia de volta à amizade, com seu jeito brincalhão e escarnecedor. No fundo, o velho só queria jogar, uma partida após outra, outra e outra.
A palavra Cajal – grafia correta, segundo ele, que só não carregava nos documentos por um erro do cartório, que o registrou como “Kasal” - passa a integrar os verbetes do glossário enxadrístico brasileiro:
Cajal: singular, masculino, do verbo cajalar. Ato ou efeito, por meio de uma jogada em uma partida de xadrez, capaz de surpreender, inspirar, assustar ou afrontar o adversário; lance tático, sutil, rasteiro e rápido, que muda instantaneamente o curso de uma partida.
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Onde quer que estejam, Paul Morphy e Mikhail Tal, grandes adeptos do xadrez romântico, comemoram a chegada de mais um entusiasta e adversário para suas partidas sempiternas.
No primeiro confronto com Tal, o velho Andrey dispara não só as peças contra o letão, mas também suas mortíferas palavras: “Não sei como fui perder para você, Tal, sempre tentando dar seus golpinhos”.
[Por Tiago Augusto dos Santos]
25 comentários:
Conheci o Dr Cajal. Parece que ele era sanitarista. Joguei contra ele. Era rápido. Nos 5 mim era muito dificil vencê-lo. Falava pouco. Ficava andando por entre as mesas como que a assitir a todas as partidas. Inquieto, inteligente.
Bem lembrado pelo colega,andava de sandalias.Tb sou médico e tentei puxar papo, mas para ele o importante era o calculo das jogadas. Grande figura do nosso clube de xadrez de SP. Deus o abençõe. Italo Venturelli
Grande homenagem, parabéns, à altura do legado humano, a seu modo, do grande Cajalito!
Há algum tempo atrás tive oportunidade de vê-lo em ação e fico feliz por ter registrado suas últimas imagens em ação no seu reduto favorito, o sagrado tapete vermelhor do CXSP!
http://www.youtube.com/watch?v=Eoa-uOJHEHs
adeus Cajalito!
Joca
www.xadreztorneios.blogspot.com
Muito bom Tads Abraço
Tiago Tté_SP
Parabéns pelo relato comovente e fiel a esse que foi, ou melhor, é um personagem lendário do xadrez paulista.
Lamento pelos que vierem depois e não terão o privilégio de conhecê-lo.
Que aplique muitas cajaladas no Céu.
Bom texto, parabéns1
Mas quem escreveu? Não está assinado...
ANDERSON T DIAS
Anderson, obrigado! O texto é meu: Tiago A. dos Santos. Abraços
Cajal. Um cara realmente apaixonado pelo xadrez! Descanse em paz
Obrigado Tiago, por nos trazer informações deste grande talento do xadrez.
Obrigado Tiago, por nos trazer informações desta grande lenda do xadrez brasileiro.
importante jogador com um amor incondicional pelo xadrez não aceitava perder nunca...mas extremamente ético no tabuleiro:xadrez era seu procedimento de vida!!!
Um amigo folclórico que deixará muita saudade.
João Kajiwara
Um amigo folclórico que deixará saudade.
Tiago, meu sobrinho, veja se consegue uma partida dele contra Cesar Soares lá pelos anos 80 , já que esta partida sempre fazia parte do folclórico Cajal :- "Dei mate nele no centro do tabuleiro" vaticinava o emérito homenageado !
esteja em paz cajal
Parabéns pelo texto que certamente traduz o entendimento da maioria dos enxadristas que o conheceram. Descanse em paz! Jonel Iurk
Bela homenagem, Tiago. Esse vai fazer muita falta.
Com um jeito que era só dele, cara fechada mas um coração aberto. Foi uma grande pessoa na área da saúde tb; coordenador de área, médico sanitarista e estava atuando como clinico geral na UBS Guaianases I. Está fazendo muita falta, saudades....
Linda homenagem!!! Trabalhei com ele, gostavamos muito dele!!!
Grande Cajal! Eu achava engraçado um médico sanitarista que não gostava de tomar banho! SAZ
Grande Cajal! Eu achava engraçado um médico sanitarista que não gostava de tomar banho! SAZ
Botucatu, Outubro de 2020. Hoje ao comentar sobre xadrez com um amigo me veio a lembrança do André Cajal, onde estaria? Pesquiso via Google e me deparo com esta crônica de Tiago A dos Santos, muito singela e afetiva sobre o André.
Me dei conta que ele se fora. Fomos colegas de Turma na Fac de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (hoje FM da Unesp). Eu tenta jogar com ele mas não era pareo (claro), mas ao menos eu tentava cuidar um pouco dele, força-lo a se cuidar melhor, se higienizar, se vestir melhor, mas... era o perfil dele. Ele caiu de turma, pois só pensava no xadrez e perdia aula jogando sem parar. não sei se estudava, me parecia puramente intuitivo. Nos Campeonados inter-medicina, só dava ele. Não tinha familia, o xadrez e os competidores era sua familia. Era um amigo, diferente e até folclórico, mas um amigo.
Conheci o Cajal no Clube de Xadrez São Paulo, onde frequentei, desde o início dos anos 70 até final dos anos 80. Uma vez fui emparceirado com ele no relâmpago de 5 minutos do sábado. Eu de brancas. Ele apertou o relógio e fiz o primeiro lance, Cf3. Ele olhou bem pro tabuleiro e depois pra mim. Disse algo que não entendi e pedi pra repetir.Ele disse; você jogou Ce3.Só então vi que tinha feito um lance impossível,no primeiro lance! Para minha surpresa,ele deixou eu voltar, mas ganhou rapidinho.
Cajal, com certeza foi de longe a figura mais folclórica do meio enxadrístico que já conheci. Fui vítima dele por anos, como muitos, até conseguir uma vitória e muitas vieram depois. Todos as quartas, sextas e sábados, estava lá o Cajal, pronto para as suas pitorescas "cajaladas". Em uma partida com ele, consegui a proeza de promover 6 damas, ele não abandonava nunca. A lagoa cheia de patos assistindo e se deliciano na partida. Pronto para dar o mate, ele abandonou! Posso dizer que foram inúmeras partidas que perdi ganho e outras praticamente massacrado por uma combinação de 5 ou mais lances. Ele sempre dizia no final de um torneio que ganhava, perguntamva: "como foi Cajal"? Ele respondia: "deu a lógica". Um dos melhores jogadores de xadrez que conheci, por não saber muito a teroria e ter na mente a capacidade assustadora de assimilar uma sequência mortal de lances para o Xeque-mate ou para ganho de material! Uma perda irreparável para o xadrez brasileiro!
Conheci Cajal na Faculdade de Medicina de Botucatu, o texto é singela e espetacular homenagem ao enxadrista e médico. Joguei contra ele algumas vezes na arena em que ele era implacável, partidas rápidas, perdi muito, eram eventos completos, resmungos incompreensíveis, rapidez nas jogadas mais do que habitual, odor característico este sim habitual, avidez pela vitória, fisionomia mortificada fixa no tabuleiro, indecifrável e vitórias eram fatos comuns prenúncios das próximas e próximas. Grande figura, folclórica no nosso meio, também sou médico e digo que quem conviveu com ele não o esquece. Parabéns Tiago. Cajal foi notável. Paulo Eduardo de Souza
Querido Cajal, fez parte de minha infância, que Deus te abençoe querido Ídolo.
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