domingo, 4 de setembro de 2011

O novo homem no comando

Kasparov procura a melhor forma de expressar-se
GARRY KASPAROV ESTÁ DIFERENTE. Entretanto, não é a aparência física nem o jeito de andar sob uma chuva de aplausos que mudaram no ex-campeão mundial de xadrez. O novo homem, de 48 anos, está livre da pressão que o cercava quando visitou o Brasil pela última vez. Sua postura é leve, seu discurso é caloroso e sua relação com o público é bem mais receptiva.

Aposentado e candidato às eleições - quer seja da Fide ou da Rússia, ambas de suas atuais lutas políticas -, Kasparov age agora como alguém que acabara de ser aprovado, com louvor, na Escola de Oratória e Carisma dos Homens de Negócio Mais Bem-Sucedidos do Mundo.

Com uma camisa azul e terno e sapatos em tons pastéis claros, o então temível Ogro de Baku chegou sorrindo e acenando timidamente para as pessoas que o aplaudiam na plateia da sala de conferência Gauguin, onde ele iria abrir o 1º Festival ADX de Xadrez, promovido pela Associação para o Desenvolvimento do Xadrez, patrocinadora de sua vinda ao Brasil. Estava contente, lisonjeado pela recepção brasileira e, pela primeira vez, parecia demonstrar um sentimento de gratidão e de humildade, ainda que de forma sutil, nunca vistos em sua carreira pública de mais de 20 anos.

A passos firmes e confiantes, Garry dirigiu-se à mesa de cerimônia e cumprimentou brevemente aos organizadores, convidados e Grandes Mestres sentados, como o paranaense Jaime Sunye Neto, com quem disputou uma de suas melhores partidas, e o paulistano Giovanni Vescovi, seu representante na América Latina. Quando o Mestre Internacional Herman Claudius van Riemsdijk o anunciou sendo “o melhor jogador de xadrez de todos os tempos”, ele sorriu discretamente, como se tal afirmação fosse exagerada.

Garry cumprimentou novamente o velho amigo holandês e perguntou sobre a intérprete, preocupado com a compreensão total do público para o que iria pronunciar dali a alguns segundos. Ao vê-la logo atrás de si, ajeitou o terno pela terceira ou quarta vez naquela sala, regulou a altura do microfone e preparou-se para começar seu discurso sobre a Kasparov Chess Foundation e conceder entrevista coletiva aos jornalistas que o aguardavam.

Kasparov disputou jogo amistoso com seu "parceiro"
Eram cerca de dez e quarenta da manhã, 30 de agosto, e fazia um sol radiante fora do WTC Sheraton Hotel, em São Paulo, quando Garry começou a falar: “Se a minha memória não falha, eu estive aqui sete anos atrás, no outro lado da rua, no Hilton Hotel”, disse o russo, como se, por acaso, falhar fosse uma condição possível para a memória de um gênio com QI maior do que o de Albert Einstein.

A diferença no tom e no timbre daquela voz abafada e corrida da última visita eram notáveis. Este era um discurso muito mais planejado, inspirador e persuasivo. Parecia tê-lo praticado à exaustão, da mesma forma que treinava sua Defesa Siciliana. Kasparov não era mais o gênio egocêntrico conhecido por destruir o ego de seus oponentes nos tabuleiros, era um homem sociável, tentando convencer mais e mais pessoas.

Tudo estava diferente agora, como ele mesmo fez questão de destacar. “Não é apenas o hotel que mudou, muitas coisas mudaram desde a última vez”, disse. Seja pela aposentadoria ou pelos novos objetivos de vida, o Garry Kasparov que está no comando agora tem outra personalidade. Após sete anos, ele voltara menos arrogante e menos autosuficiente. “Muitas coisas aconteceram desde a última vez. Uma delas, como vocês sabem, é que eu me aposentei, em 2005, mas isso não quer dizer que eu perdi meu interesse e minha paixão pelo mágico jogo de xadrez”, pronunciou.

O entusiasmo com que jogava suas partidas, sempre arriscando e procurando as posições mais agressivas, transferiu-se para sua fala. Até mesmo nas perguntas mais simples, ele refletia e procurava responder de maneira a incluir e se fazer compreender pelo maior número de pessoas possível. A preocupação com quem está do outro lado, que nunca foi um forte em sua vida, estava definindo suas novas atitudes. O Garry de agora está compartilhando suas ideias e montando um exército de gente que acredita e defende a mesma ideologia. Ele fala de seus planos como se fossem uma missão divina. “Acredito que, como alguém que representou o jogo de xadrez por tantos anos, eu tenho uma responsabilidade especial em relação a ele”.

Até mesmo Anatoly Karpov, com quem travou suas mais emocionantes e tensas disputas, recebe agora um carinho especial do russo ex-comunista. Quando a intérprete traduziu “arquirrival” como “inimigo” em sua fala sobre Karpov, Kasparov fez questão de corrigi-la, demonstrando certo conhecimento sobre a língua portuguesa: “meu amigo, amigo!”, brincou em sua costumeira ironia. Ao ser questionado, por um repórter do Portal Terra, se lhe daria a honra de uma disputa nos tabuleiros, respondeu sorrindo da mesma forma irônica: “of course not”.

Kasparov gravou programa para o canal SporTV
Seu bom-humor e sua crença de que mudará a história do xadrez, mesmo que não esteja mais em competições, pareciam tão inabalados e sólidos quanto a Defesa Berlinesa na qual perdeu o match pelo título mundial para seu discípulo Vladimir Kramnik, em 2000. Contudo, uma coisa não é diferente neste novo Garry: há força suficiente em seu caráter para continuar minando seus adversários. Ele aposentou-se, sim, mas ainda está muito longe de ter desistido da luta. Em menos de uma hora de entrevista, Kasparov destilou suas fortes convicções sobre o atual presidente da Fide, que está, segundo ele, "perdendo tempo contando quantas naves espaciais aterrissam na Terra ou visitando amigos ditadores como Kadafi, da Líbia"; sobre o regime de Vladimir Putin, o qual chamou de "ditadura oligárquica"; sobre o ciclo dos campeonatos mundiais, que "abandonaram as grandes cidades"; e até mesmo sobre o próprio Kramnik, a quem disse que sua força de jogo “está sendo desmantelada da mesma forma que Deep Blue”.

Político, ele atendeu a todos e se empolgava quando as perguntas que lhe dirigiam versavam mais sobre o jogo de xadrez em si. Prometeu instalar um escritório de sua Fundação no Brasil e outro na Argentina, para depois expandir suas ações à África do Sul. Falou sobre a descoberta de talentos no xadrez, sobre vídeo-games e sobre o uso da tecnologia e da internet para atrair crianças ao esporte. Comentou também sobre suas melhores partidas e disse ainda ter um sonho de enfrentar o melhor computador de todos os tempos. “A questão é saber se, no auge de nossa performance, ainda somos capazes de derrotá-los”, categorizou.

Após quase duas horas, entre palestra, coletiva de imprensa e gravações para a televisão, Garry Kasparov voltou a retirar-se, deixando os homens na sala estupefatos da mesma forma que se tivessem visto uma de suas partidas magistrais, como aquela contra o búlgaro Veselin Topalov, em 1999, que ele comparou a “como se um raio tivesse descido do céu sobre a minha cabeça”. Aos presentes que foram contagiados por toda sua energia, não restaram dúvidas de que Garry também está disparando raios por onde quer que passe.

No coquetel, Kasparov à disposição para fotos e autógrafos

[Por Tiago A. dos Santos]
[Fotos Rádio Xadrez e Luiz 'Ceará' Araújo]

* O jornalista participou do evento a convite da ADX



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8 comentários:

Francisco J. A. de Aquino disse...

Muito boa essa postagem!

Anônimo disse...

Tiago,

Não achei vc não, mas achei *MUITO* bom o blog vidaemminiatura tanto o video da entrevista como o artigo que vc escreveu depois.

Brigaduuuuu!

Beco

(enviado por e-mail)

Kruger, Israel disse...

Carissimo,

Excelente post, realmente este cara mexe com as multidoes! E muito provavelmente ira conquistar a presidência de Fide em breve.

Abraço

PS: só lembrando que o Vescovi é gaúcho de Porto Alegre

Anônimo disse...

Alguém aí sabe quando e em que programa do SporTV vai passar a entrevista?

Anônimo disse...

Oi, não sei quando vai passar no SporTv, mas é possível assistir no Youtube. Coloque na busca: Kasparov no Programa do Jô

joaquim virgolino disse...

PREZADO AMIGO,

Parabéns pela matéria sobre a vinda de Kasparov ao Brsil, muito bem elaborada e bastante criativa é Leontxo García na Espanha e você no Brasil. Valeu mesmo! Abraços,
Joaquim Virgolino - PB.

Glaucio Cafalchio disse...

Graaande Thiago!

Excelente matéria! Parabéns!!!
Você já é um dos jornalistas mais importantes do xadrez brasileiro. Nunca deixe de contribuir com nosso amado esporte utilizando seu grande talento com as palavras e com as peças!
Apareça qualquer dia em uma etapa do Vale! Um grande abraço!!!

Glaucio Cafalchio

JUSTI disse...

Grande Tiago,

Parabéns pela cobertura do evento e as matérias publicadas aqui no vidaemminiatura.com. Continue escrevendo ai com mais novidades do mundo do xadrez.
E não esquece de me entregar a caneta que o Kaspa deu autografos!!

abraços

JUSTI

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