O SURPREENDENTE FINAL do décimo segundo jogo do campeonato mundial de xadrez deixou totalmente em choque as pessoas que assistiam à partida na sala VIP do mundial, disputado em Londres, Inglaterra.
Ao verem o aperto de mãos entre os enxadristas, sobre o tabuleiro ainda cheio de peças, algumas pessoas pensaram que o desafiante Fabiano Caruana (Estados Unidos) havia abandonado a partida. Muitos ficaram extremamente surpresos quando se deram conta de que, na verdade, era o tri-campeão Magnus Carlsen (Noruega) quem havia oferecido o empate.
É a primeira vez, em séculos de história do esporte, em que o match mais importante do xadrez termina sem vitórias para nenhum dos lados. Após o total equilíbrio (6 a 6) nas 12 partidas clássicas, o título será decidido nos desempates de partidas rápidas, uma espécie de “disputa de pênaltis” se comparado ao futebol.
A perplexidade dos fãs e especialistas com o resultado da última partida em Londres logo se espalhou entre as milhares de pessoas que acompanham pela internet ao redor do mundo. A opinião majoritária é a de que, pela distribuição das peças no tabuleiro e pelo tempo restante nos relógios para os enxadristas completarem a partida, tudo indicava para um final cheio de emoções e com algum vencedor.
No entanto, surpreendentemente, Carlsen fez uma oferta inusitada de acabar empatada aquela partida, mesmo em posição superior e com vantagem de tempo (43 x 16 minutos). Até mesmo Caruana ficou desconfiado e pensou por vários minutos antes de aceitar o estranho “presente”.
SEM EMPATES
O espanto ganha proporções maiores porque Carlsen é reconhecidamente um competidor tão voraz que não fez nenhuma proposta de empate aos seus adversários (contra Anand duas vezes e Karjakin uma vez) nos três matches que venceu anteriormente, seja qual fosse a posição das peças no tabuleiro.
Dessa vez, entretanto, foi dele a iniciativa de estender a mão oferecendo “trégua” ao norte-americano, justamente em uma posição em que os especialistas (incluindo computadores) apontavam como promissora e com reais chances de vitória.
O norueguês, que já foi considerado o “Mozart do xadrez”, não costuma dar paz aos seus oponentes nem mesmo em posições teoricamente iguais. Muitas das suas vitórias nasceram justamente de posições equilibradas em que ele “espremia” os oponentes, às vezes por mais de sete horas, até arrancar uma mínima vantagem, que - genialmente - transformava em vitória.
O que, então, teria acontecido? Por que o campeão levantou a bandeira branca e optou por decidir o título nos tie-breaks?
FAVORITISMO
No ranking da modalidade de xadrez rápido, na qual o desempate será jogado, há um certo favoritismo para Magnus Carlsen. Ele tem mais de 100 pontos à frente do adversário e nunca perdeu uma disputa com esse controle de tempo: são 9 matches e 9 vitórias (uma delas, inclusive, contra o próprio Caruana).
Sendo assim, uma análise mais conservadora indica que Carlsen está tomando a decisão certa, ou seja, levando o jogo para um cenário no qual ele detém mais chances de vencer.
Não que a força entre eles seja tão desigual - apenas 3 pontos separam os Grandes Mestres no ranking clássico da Federação Internacional de Xadrez, uma leve vantagem para Carlsen, embora analistas digam que a atual fase de Caruana neste ritmo é superior.
O estranho, segundo os experts, é o fato de um campeão tão genial, que já conquistou tudo na carreira, ceder tão amigavelmente uma oportunidade de escapar a alguém que ele quer destruir. Por que ele fez isso? “Quando se poupa o lobo, as ovelhas correm perigo”, alertou um aficionado logo ao final da partida.
CRÍTICAS A GRANEL
Os fãs não eram os únicos atônitos, muitas críticas surgiram após o empate.
O ex-campeão mundial Garry Kasparov (Rússia) não poupou Carlsen em sua conta no Twitter. “Ele está claramente ficando nervoso”, comentou.
Kasparov disse, ainda, que aceitar o empate em condição de se jogar por vitória é prova de um abalo emocional. Outro ex-campeão mundial russo, Vladimir Kramnik, também foi taxativo: “oferecer empate nessa posição é vergonhoso”.
Até mesmo pessoas próximas a Carlsen se chocaram com sua decisão. “Foi extremamente covarde”, confessou seu amigo e colega de equipe na seleção norueguesa, Grande Mestre Jon Hammer, ao jornalista Tarjei Svensen.
Mesmo seu empresário e agente, Espen Agdestein, uma das pessoas que mais conhece o campeão, ficou surpreso: “é o maior choque do mundo”, comentou ele ao cronista norueguês.
ELE GANHARIA?
De fato, se olharmos friamente a posição do tabuleiro em que Carlsen concordou em empatar, o norueguês tinha vantagens de espaço e iniciativa, além de melhor harmonia entre as peças, que são raras de se obter no jogo de elite.
Soma-se a isso uma abrupta questão de diferença de tempo: Magnus possuía mais que o dobro de minutos do seu adversário para arrematar a partida, ou seja, Caruana teria de jogar de forma totalmente precisa na defesa para não perder. E sabemos que quando o relógio nos açoita, a cabeça desvanece...
Então por que o campeão mundial, antes conhecido como um tiranossauro assassino à procura de degolar suas vítimas no tabuleiro, concordou com a bandeira branca e serena do empate?
ENFIM, HUMANO
Conheci pessoalmente a Magnus Carlsen em 2011, quando ele esteve no Brasil para disputar (e vencer) o Grand Slam de Xadrez, em São Paulo. Ele já era o número 1 do ranking mundial, embora só derrotaria Viswanathan Anand (Índia) e se tornaria o campeão mundial algum tempo depois.
Tímido e de poucas palavras, Carlsen fazia jus ao apelido de Mozart do xadrez que a imprensa lhe rendia. Parecia sempre absorvido em seus próprios pensamentos, expressava poucas emoções e quase nenhum interesse pelas dezenas de meninas e meninos que faziam fila em torno dele para tirar uma foto com o ídolo.
Em um coquetel animado oferecido pelos organizadores do evento, pude notar que Magnus era o que se sentia menos à vontade. Muitos bebiam, jogavam conversa fora, contavam piadas e observavam aos outros convidados, enquanto Carlsen se mantinha fechado e isolado numa rodinha com o empresário, o pai e poucos amigos.
Quando falava de xadrez, no entanto, tudo mudava. Os olhos rapidamente brilhavam ao analisar uma posição ou receber um elogio por suas jogadas. Queria provar o tempo todo que estava no auge, que era o melhor do mundo.
Naquele torneio de 2011 em São Paulo, ele teve um baque inesperado e suas intenções ficaram ameaçadas. Ele perdeu uma partida teoricamente empatada para o considerado jogador mais fraco do torneio, o espanhol Paco Vallejo.
Sua aura mudou rapidamente. Saiu do local de jogos sem dar entrevistas, chutando o ar, revoltado. Dali em diante, muitos passaram a chamá-lo de “mimadinho”. Só falava quando ganhava, só sorria ou dava autógrafos quando tudo ia bem.
Ele estava indo bem no torneio e aquela derrota poderia afastá-lo do objetivo de tornar-se o então desafiante ao título de campeão mundial. A única forma de recuperar a liderança da prova era derrotar, com as peças pretas, o novo líder Vassily Ivanchuk (Ucrânia) na rodada seguinte.
Magnus Carlsen, o Mozart, conseguiria extrair uma rápida lição de sua derrota? Saberia lidar com seus pontos fracos e reconhecer que subestimou seu competidor?
Caso não obtivesse sucesso na partida seguinte, sua carreira poderia ter tomado rumos diferentes e não estaríamos escrevendo ainda hoje sobre suas façanhas, seus nervos de aço e suas jogadas de máquina.
É claro que ele conseguiu. No dia seguinte, venceu Ivanchuk de maneira brilhante, e com as peças pretas! E também não quis dar entrevistas após o duelo. Mas, por um raro lance de sorte, eu estava posicionado justamente atrás do palco dos jogos quando ele saiu sem falar com a imprensa.
Foram segundos mágicos para mim, um jovem jornalista fã do esporte cobrindo aquela competição mundial. Foi como se, por alguns instantes, eu tivesse invadido à esfera mais íntima de um gênio e compartilhado aquele momento com ele em sua mente.
Sem notar que eu observava sua caminhada solitária de cerca de 40 metros até o carro em que Espen Agdestein o esperava para levá-lo de volta ao hotel, Carlsen pulava no ar feito uma criança. Sua alegria era contagiante, jogava os braços para o alto com os punhos cerrados, tal qual Pelé comemorando seus gols.
Sempre tão sério, tímido e friamente comparado às máquinas, aquele foi um raro e excepcional extravasar do campeão. Carlsen me provou, naquela tarde, aos seus tenros 20 anos, que era apenas um menino humano feliz por derrotar aquilo que lhe causava mais medo: a própria derrota.
A partir daí, por mais que suas incríveis vitórias e títulos mundiais o tenham elevado ao status de “extraterrestre”, tenho certeza de que ele ainda tem seus sonhos e medos humanos, como todos nós. Tenho certeza de que, de volta sozinho no hotel de Londres, ele comemorou a conquista do objetivo daquele décimo segundo jogo: “apenas” não perder.
QUEM GANHA?
Carlsen sabe do que é capaz nos tabuleiros, embora não tenha hoje a mesma ambição do início da carreira. Ao ser perguntado sobre qual jogador do passado gostava mais, ele teve uma rara e bem-humorada lembrança daqueles tempos implacáveis ao sugerir “eu mesmo (Carlsen), três ou quatros anos atrás”.
Talvez a falta da ambição inicial seja o motivo de oferecer empate no último jogo. Talvez seja só parte da estratégia baseada na confiança em si mesmo de que vencerá nas partidas rápidas. A verdade é que o próprio Kasparov, em situação semelhante nos anos 1990, afirmou ser “muito difícil mudar a mentalidade para uma vitória quando você se dispôs a jogar por um empate”.
Ao ser avisado na coletiva de imprensa, após o empate com Caruana, de que o computador dava uma grande vantagem para ele na partida, o menino mimado reagiu, com cara de poucos amigos, como qualquer um de nós ao se sentir ameaçado por uma máquina que não sente frio nem medo: “eu não me importo! Vou vencer nas rápidas”.
Ficou claro, ao menos para mim, que empatar era a estratégia dele desde o início. A questão ainda a ser respondida é outra: e tal estratégia, vai funcionar? Amanhã descobriremos.
Escrito por Tiago Augusto em 27/11/2018
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